por MANUEL GARCIA M. | Professor
de matemática e filosofia | in Revista Esfinge
«Provavelmente muitos de vocês se perguntem qual a relação entre futebol
e filosofia, e inclusive pode ser que os entedie este jogo e nem o considerem
um esporte. Na verdade, minha intenção é apenas usar o futebol como ferramenta
para falar de filosofia, e demonstrar que esta disciplina não é própria e
exclusiva de uma minoria elitista, mas o contrário, a atividade filosófica é
natural no ser humano.
A filosofia nos serve para descobrir
paulatinamente as leis que regem a vida, e portanto, as leis que regem a nós
mesmos. Por isso, a filosofia serve para conhecermos melhor a nós mesmos e a
natureza. Esta possibilidade de conhecimento que nos oferece a filosofia é a
chave para evitarmos sofrimentos desnecessários e construir uma autêntica
fraternidade entre todos os seres humanos.
Futebol e vida
O que vemos hoje em dia em muitos estádios de
futebol, independentemente da categoria da equipe, se afasta bastante do que
entendemos por esporte, pois se transformou em uma ferramenta de manipulação da
sociedade e, sobretudo, em fonte de maus exemplos, especialmente para os mais
jovens.
Então, o que é o futebol? Um famoso
treinador, que já não está mais na ativa, afirmou em uma entrevista que o
futebol é “receber, controlar, correr e passar a bola”. E mesmo isto, se
refletirmos um pouco – nos transformamos em filósofos conscientes por um
instante! – é a vida. Recebemos a vida em nosso corpo ao nascer, vai se
desenvolvendo, vamos crescendo, corremos com a vida, e logo, chega o momento em
que devemos passar a vida, a bola, a outro companheiro. Realmente a vida não
deixa de se mover nunca, passa de uns para os outros.
No futebol, há aqueles que não passam a bola,
eles são chamados “fominhas”. Do mesmo modo, existem pessoas que se empenham em
viver superficialmente e não colaborar com o resto da sociedade. Poderíamos
dizer que os preocupa mais o status pessoal, a sede pelas homenagens, que o bem
da própria equipe… Platão chamava isso de timocracia; que pouco nós avançamos!
O que podemos aprender do futebol
O futebol, como esporte, é um jogo de equipe,
por isso, podemos aprender dele valores humanos, como o sentido do dever, a
solidariedade, a responsabilidade e o compromisso moral, não apenas com os
demais, se não também, com nós mesmos, e além disso podemos aprender também o
valor da fidelidade.
Existem tradições em outros esportes, como
por exemplo no rugby, que exemplificam muito bem tudo o que foi dito
anteriormente. É costume em muitas equipes de rugby que, ao terminar a partida,
a equipe visitante limpe o seu vestuário, independentemente se ganhou o jogo ou
não, como demonstração de respeito ao rival.
No futebol, todos os jogadores de cada equipe
entram na partida com uma estratégia: 4-4-2 losango, marcação homem a homem…;
na vida acontece a mesma coisa. A filosofia nos ensina que nada acontece por
acaso, se não que tudo acontece por necessidade, tudo obedece a uma lei, outra
questão é que nós não conhecemos essa lei. Então dizemos: “Ah, isso acontece
por casualidade”; ou no futebol diríamos: “o adversário teve sorte”.
Fazem muitos séculos – alguns historiadores
dizem que no século VI a. C. –, na Grécia, nasceu a filosofia. Estes sábios
gregos afirmavam que tudo o que acontece na natureza obedece a uma lei, e além
disso mostravam que havia acontecimentos que aconteciam com regularidade, e
claro, se isso é assim, podemos prever acontecimentos!
Permita-me aqui a nota futeboleira; quando
vemos um jogador de futebol cobrar uma falta direto ao gol do adversário,
tratando de superar a barreira colocada pelo rival, e vemos como a bola
descreve uma trajetória parabólica perfeita para se introduzir no gol do
adversário, acreditam vocês que isso é azar? Não, há muito treinamento e
esforço por detrás desse lançamento. Isto é algo que podemos aprender do
futebol, a necessidade do esforço para conseguir nossos propósitos.
Sócrates dedicou grande parte da sua vida a
investigar sobre as essências, se opondo aos sofistas, buscava a verdade.
Buscava um denominador comum em conceitos tais como a verdade, a justiça, o
bem…, para poder defini-los. Por exemplo, para chegar a definição da bondade,
tratamos de procurar o que tem em comum todos os homens que chamamos de
bondosos. Sócrates afirmava que, para empreender esta busca, é imprescindível
reconhecer esta busca, é imprescindível reconhecer a nossa ignorância,
despertar nossa consciência e, sobretudo, aprender a pensar por si mesmo –
genial! Minha experiência de muitos anos como docente me diz que é mais difícil
ensinar a alguém que acredita saber do que a alguém que reconhece a sua
ignorância.
Fidelidade a algumas cores
Se perguntamos “o que é o bem?”, é provável
que muita gente nos diga que o bem é um sentimento. Do mesmo modo, se
perguntamos, por exemplo, a muitos torcedores do Deportivo de la Coruña porque
são do “Depor”, irão nos dizer que o são por uma questão de sentimentos, que
não se pode explicar com o que comumente chamamos razão. Bem, porém vamos
aprofundar um pouco, se nos reunimos para conversar com esse torcedor, tomando
um café, e melhor depois de uma vitória do time, talvez cheguemos a conclusão
de que muitos torcedores do “Depor” o são por uma questão de fidelidade a uma
cidade, aos pais que sempre torceram para esse time, fidelidade, um valor
universal que hoje em dia até é criticado. Por isso já não se diz “sou fiel aos
valores de tal equipe”. No entanto, escutamos “sou fã de…”. Observemos a
palavra fã. Se trata de uma abreviatura de fanático, pessoa que defende uma
crença ou uma opinião com paixão exagerada e sem respeitar as crenças e
opiniões aos demais. Talvez agora compreendamos um pouco mais o que se passa em
muitos estádios. Vemos como a linguagem retrata toda uma sociedade.
Porém voltamos as essências que buscava
Sócrates. As essências, para nós, são muito difíceis de definir, porém podemos
sentir, podemos sentir a beleza, por exemplo. Quando estamos diante de uma obra
“artística” nos perguntamos o que é isso?, sem sentir nada, o mais provável é
que essa obra, de artística tenha muito pouco. O mesmo acontece quando dizemos
que nosso time jogou bem, porém sentimos em nosso interior um convencimento que
nos permite fazer essa afirmação.
Caos, ordem e futebol
Existem futebolistas que, com apenas a sua
presença no campo, colocam ordem em sua equipe. Casos como o de Xavi Hernández
são exemplos de jogadores que canalizam o “logos”, a ideia que propõe o
técnico. Se diz que eles que “fazem jogar a equipe”; se me permitem agora o
apontamento filosófico, diria que esses jogadores são os que mostram o caminho,
colocam ordem no caos, pois não se trata apenas de fazer gols, se trata de como
se joga. A alegria de um gol é momentânea, porém disfrutar de um jogo de uma
equipe pode durar os noventa minutos da partida. Não se trata de viver mais ou
menos, se trata de como se vive.
Todos os filósofos nos ensinaram que é
imprescindível buscar na vida essa ordem para chegar à felicidade. Retornando à
fidelidade, poderíamos falar de fidelidade com coerência entre pensamento,
sentimento e ação, fidelidade é um ideal. É curioso como muitos times de
futebol são fiéis a um sistema de jogo, não o alteram, jogam em essência,
sempre igual, recordemos o Barcelona de Guardiola; e quando rompem essa
fidelidade, costumam perder. Fazer o que devemos, ser fiel a nossos valores
humanos, tem muito mais transcendência do que nós podemos imaginar, escolher
entre um comportamento moral e outro imoral vai definir a solidez de nosso
edifício interior, de nossa essência.
No início deste artigo dizia que o que vemos
hoje em dia em muitos estádios de futebol se afasta bastante do que entendemos
por esporte. Uma nuvem de interesses econômicos, pouco claros muitas vezes,
invade praticamente todo o esporte. E o pior é que o mercantilismo abarca
também as pessoas; se fala de comprar ou vender a tal futebolista, ou este
jogador vale tantos milhões… dá a sensação de que estamos em um mercado de
escravos. No futebol de hoje em dia o dinheiro o corrompeu de tal forma que as
essências se perderam no ar, se perderam os valores clássicos desse esporte.
Do mesmo modo, o positivismo do século XIX
levou o ser humano a focar a sua vida desde um ponto de vista utilitarista,
provocando um desinteresse pela busca das essências, pobre Sócrates! Quer
dizer, apenas nos preocupamos com os fatos, o resultado do jogo; e isso é
certamente um problema, pois os acontecimentos mudam, e se não buscamos as
causas desses acontecimentos, nunca iremos avançar.
Quero encerrar essa breve reflexão com um
fato que aconteceu faz alguns anos em uma partida de futebol de uma liga de
amadores na Galícia: um jogador possui a bola em sua área; de repente, escuta o
som de um apito e acredita em ‘o árbitro parou o jogo’. Então ele para e segura
a bola com a mão, o árbitro se dirige a ele e apita pênalti; o apito havia
vindo da grade. A pena máxima não se pode reivindicar. Então aconteceu algo
inacreditável, o atacante encarregado de chutar o pênalti fala em particular
com o goleiro rival e lhe diz em que direção vai chutar a bola, para que ele
possa pegá-la. O goleiro não acredita nele, porém assim aconteceu. Tive a sorte
de conversar com esse goleiro, um jovem de vinte anos. Ele comentava comigo que
não era capaz de compreender os motivos desse comportamento do atacante rival;
naquele momento eu lhe respondi que às vezes o silêncio é a melhor resposta.
Porém hoje eu diria, como demonstrava anteriormente, que o importante não é
ganhar ou perder, o importante é como se joga. O importante é escolher uma
forma de vida que nos permite construir um sólido edifício interior, com uma
profunda base moral.»
Fonte: https://www.revistaesfinge.com.br/2019/09/20/futebol-e-filosofia/